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24 de Abril de 2024

Resumo do Informativo nº 920 do STF

há 5 anos

Brasília, 15 a 19 de 2018 Nº 920

Plenário

DIREITO PROCESSUAL PENAL — EMBARGOS INFRINGENTES

STF: embargos infringentes e calúnia eleitoral

O Plenário, por maioria, conheceu de embargos infringentes opostos de acórdão da Segunda Turma e deu-lhes provimento para absolver o acusado da prática do crime de calúnia eleitoral.

Afastada a preliminar de prescrição, o Supremo Tribunal Federal (STF) rememorou entendimento firmado na AP 863, segundo o qual os embargos infringentes são cabíveis contra acórdão condenatório não unânime, desde que proferidos dois votos absolutórios, em sentido próprio, no julgamento de mérito de ação penal pelas Turmas da Corte.

Consignou que, no entanto, o caso concreto impõe distinguishing, a permitir os infringentes com um voto absolutório em sentido próprio. O quórum na sessão estava incompleto. A Turma contava com quatro ministros e a exigência de dois votos conduziria, por si só, à absolvição do acusado. Além disso, a admissibilidade dos embargos deu-se em momento anterior à mencionada construção jurisprudencial.

Dessa maneira, excepcionalmente, o Tribunal reiterou a admissão dos embargos. A parte não pode ser prejudicada pela ausência do quórum completo.

Os ministros Edson Fachin e Roberto Barroso aduziram que, havendo quatro votos com um divergente na linha da absolvição própria, o procedimento a ser adotado é aguardar-se a composição plena. A ministra Cármen Lúcia registrou conhecer dos embargos sem se vincular ao posicionamento. O ministro Marco Aurélio frisou que a Turma funcionou com o quórum exigido regimentalmente suplantado e atuou como órgão revisor. O enfoque jurisprudencial a exigir dois votos vencidos ocorreu dois anos após o surgimento do interesse em recorrer. A situação jurídica em apreço se enquadrou no parágrafo único do art. 609 (1) do Código de Processo Penal (CPP).

Vencido o ministro Celso de Mello na preliminar de conhecimento dos embargos. Para ele, a necessidade dos dois votos deve prevalecer diante da existência de quórum regimental a legitimar a realização de julgamento por órgão fracionário do STF, especialmente na espécie, em que presentes quatro ministros.

No mérito, o STF absolveu o acusado. Considerou que a prova da lesividade da conduta há de ser aferida no curso da ação penal, perquirindo-se, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, a configuração ou não da materialidade delitiva, acima de dúvida razoável. O condenado, cujo comitê fora invadido, teria dito suspeitar do governo, de forma genérica. O áudio da entrevista beneficia a versão apresentada pela defesa, e a manifestação acoimada na denúncia revela-se lacônica.

Ademais, o depoimento da vítima – sujeito passivo direto dos crimes contra a honra – assume papel de relevância, porquanto é o titular do bem jurídico protegido pela norma criminalizadora. No caso, a suposta vítima pronunciou-se nos autos, expressando que tudo não passou de querela inerente ao calor do debate eleitoral e que seus efeitos se exauriram naquele contexto, sem sofrer qualquer ofensa a sua honra pessoal. Consectariamente, não há prova segura da materialidade da conduta.

O ministro Alexandre de Moraes enfatizou a falta de elemento subjetivo do tipo e que a querela não chegaria a ser calúnia.

Vencidos a ministra Cármen Lúcia e o ministro Celso de Mello, que negaram provimento aos embargos. A ministra ressaltou que a manifestação do ofendido foi trazida somente nos infringentes e que o fundamento de a pessoa não se sentir ofendida não altera uma ação pública incondicionada. Já o ministro rejeitou os embargos também por constatar ter sido correta a sentença penal condenatória proferida pela Justiça Eleitoral e mantida pela Segunda Turma.

(1) CPP: “Art. 609. (...) Parágrafo único. Quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu, admitem-se embargos infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de 10 (dez) dias, a contar da publicação de acórdão, na forma do art. 613. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência. ”

AP 929 ED-2º julg-EI/AL, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 17.10.2018. (AP-929)

Repercussão Geral

Primeira Turma

DIREITO PROCESSUAL PENAL – PRERROGATIVA DE FORO

Prorrogação de competência e prerrogativa de foro

Finalizada a instrução processual com a publicação do despacho de intimação para serem apresentadas as alegações finais, mantém-se a competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para o julgamento de detentores de foro por prerrogativa de função, ainda que referentemente a crimes não relacionados ao cargo ou função desempenhada.

Sob essa orientação, a Primeira Turma, por maioria, deu provimento a agravo regimental interposto em face de decisão que, com base no que decidido na Ação Penal (AP) 937, deslocou o processo para a primeira instância a fim de que fosse julgado o delito cometido quando o réu exercia cargo público estadual em momento anterior ao início do exercício do mandato de parlamentar federal.

O Colegiado entendeu que, no caso em comento, toda a instrução processual penal ocorrera no STF, tendo sido apresentadas as alegações finais pela acusação e pela defesa. Uma das teses firmadas no julgamento da AP 937 foi precisamente a de que, após a instrução criminal, a competência do Tribunal se prorroga.

No referido precedente, o Plenário firmou as seguintes teses: a) “O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”; e b) “Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. A tese b – preservação da competência após o final da instrução processual – deve ser aplicada mesmo quando não for o caso de aplicação da tese a, ou seja, preserva-se a competência do STF na hipótese em que tenha sido finalizada a instrução processual, mesmo para o julgamento de acusados da prática de crime cometido fora do período de exercício do cargo ou que não seja relacionado às funções desempenhadas.

Vencidos os ministros Marco Aurélio (relator) e Alexandre de Moraes, que negaram provimento ao recurso. Entenderam que a competência penal do STF pressupõe ter sido o crime praticado no exercício do mandato e estar a este, de alguma forma, ligado, inadmitida a prorrogação de competência de natureza absoluta.

AP 962/DF, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 16.10.2018. (AP-962)

Transcrições

Com a finalidade de proporcionar aos leitores do Informativo STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.

Agravo regimental em habeas corpus. Penal. Dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais. Artigo 89 da Lei nº 8.666/93. Pretendido trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia. Atipicidade da conduta imputada. Ausência de demonstração do dolo específico. Agravante que, na qualidade de chefe da Assessoria Técnica da Administração Regional, emitiu parecer favorável a contratação. Manifestação de natureza meramente opinativa e, portanto, não vinculante para o gestor público, o qual pode, de forma justificada, adotar ou não a orientação exposta no parecer. O parecer tem natureza obrigatória (art. 38, VI, da Lei nº 8.666/93), porém não é vinculante. Ineficiência da denúncia na demonstração da vontade conscientemente dirigida, por parte da agravante, de superar a necessidade de realização da licitação. Abusividade da responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha supostamente resultado dano ao erário (v.g., MS nº 24.631/DF, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 1º/2/08). Agravo regimental ao qual se dá provimento para conceder a ordem de habeas corpus e trancar a ação penal à qual responde a agravante.

1. É pacífico na Corte o entendimento quanto à possibilidade de trancamento de ação penal pela via do habeas corpus quando evidente a falta de justa causa para seu prosseguimento, seja pela inexistência de indícios de autoria do delito, seja pela não comprovação de sua materialidade, seja ainda pela atipicidade da conduta imputada.

2. Demonstram os autos que o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios ofereceu denúncia em face da agravante e de outros imputando-lhes a prática do crime descrito no art. 89, c/c o art. 99, e no art. 84, § 2º, todos da Lei nº 8.666/93, porque, na qualidade de chefe da Assessoria Técnica da Administração do Paranoá/DF, emitiu parecer opinativo favorável à legalidade da contratação direta, por inexigibilidade de licitação, da Federação de Jiu-Jitsu de Brasília (FJJB), visando à realização de evento denominado “Paranoá Fight”.

3. Não logrou êxito a acusação em demonstrar suficientemente na denúncia a vontade conscientemente dirigida, por parte da agravante, de superar a necessidade de realização da licitação.

4. A documentação acostada ao processo administrativo, cuja veracidade não foi questionada, sinalizou que a FJJB seria a única Federação de Jiu-Jitsu de Brasília devidamente cadastrada e reconhecida pela Confederação Brasileira do esporte para a realização do evento na capital.

5. Toda a documentação acostada aos autos não permitia, até aquele momento, conclusão diversa de que o caso era mesmo de inexigibilidade de licitação, por inviabilidade de competição, mormente se levada em conta a total ausência de notícia no bojo do processo administrativo sobre a existência de outra entidade (Federação de Jiu-Jitsu Esportivo do Distrito Federal-FBJJ).

6. A impossibilidade jurídica de haver competição entre eventuais interessados não é um plus que se agrega às hipóteses dos incisos do art. 25 da Lei nº 8.666/93, e sim a consequência lógica da tipificação de uma dessas hipóteses.

7. Embora o Parquet tenha afirmado que a agravante teria agido dolosamente em seu parecer, diante da existência de contradições sobre a exclusividade da FJJB, o processo administrativo, em nenhuma de suas manifestações, sinalizou tais ocorrências, sendo certo, ademais, que a denunciada somente detinha competência para emitir parecer técnico sobre inexigibilidade da licitação sob prisma estritamente jurídico, não cabendo adentrar em aspectos relativos à conveniência e à oportunidade da prática dos atos administrativos, tampouco examinar a veracidade das questões de natureza técnica (como a autenticidade da documentação acostada), administrativa ou financeira, salvo teratologia, que não ficou evidenciada na espécie.

8. Por outro lado, a manifestação levada a efeito foi de natureza meramente opinativa e, portanto, não vinculante para o gestor público, o qual pode, de forma justificada, adotar ou não a orientação exposta no parecer. Ou seja, o parecer tem natureza obrigatória (art. 38, VI, da Lei nº 8.666/93), porém não vinculante.

9. Por essa perspectiva, como já sinalizado pela Corte, mutatis mutandis, é lícito concluir pela abusividade da responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha supostamente resultado dano ao erário (v.g. MS nº 24.631/DF, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 1º/2/08).

10. Tal conclusão se robustece quando se torna evidente, para além do dolo simples necessário (vontade consciente de contratar independentemente da realização de procedimento licitatório), que o Parquet não apresentou, na denúncia, elemento probatório mínimo que demonstrasse qualquer tipo de intenção por parte da agravante de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.

11. A ausência de observância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade da licitação somente é passível de sanção quando acarretar contratação indevida e houver demonstração da vontade ilícita do agente em produzir um resultado danoso, o que não foi o caso.

12. Agravo regimental ao qual se dá provimento para conceder a ordem de habeas corpus e trancar a ação penal em relação à agravante.

Hc 155.020 AgR/DF*

RELATOR: Ministro Celso de Mello

REDATOR PARA O ACÓRDÃO: Ministro Dias Toffoli

VOTO:

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:

De partida, rememoro o caso, visando à adequada compreensão da controvérsia.

Impetrou-se na Corte o presente habeas corpus substitutivo contra julgado da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, a qual negou provimento ao RHC nº 90.073/DF, Relator o Ministro Ribeiro Dantas. A ementa do aresto em questão foi assim redigida:

“PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA

DAS HIPÓTESES LEGAIS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE.

ALEGADA AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO. DEMONSTRAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO. HIPÓTESE DE OBRIGATORIEDADE DE CONTRATAÇÃO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP.

CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. Nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, o que não se infere na hipótese dos autos. Precedentes.

2. O reconhecimento da inexistência de justa causa para o exercício da ação penal, dada a suposta ausência de elementos de informação a demonstrarem a materialidade e a autoria delitivas, exige profundo exame do contexto probatório dos autos, o que é inviável na via estreita do writ. Precedentes.

3. Para o oferecimento da denúncia, exige-se apenas a descrição da conduta delitiva e a existência de elementos probatórios mínimos que corroborem a acusação. Provas conclusivas da materialidade e da autoria do crime são necessárias apenas para a formação de um eventual juízo condenatório. Embora não se admita a instauração de processos temerários e levianos ou despidos de qualquer sustentáculo probatório, nessa fase processual deve ser privilegiado o princípio do in dubio pro societate. De igual modo, não se pode admitir que o julgador, em juízo de admissibilidade da acusação, termine por cercear o jus accusationis do Estado, salvo se manifestamente demonstrada a carência de justa causa para o exercício da ação penal.

4. A alegação de inépcia da denúncia deve ser analisada de acordo com os requisitos exigidos pelos arts. 41 do CPP e 5º, LV, da CF/1988. Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, de modo que viabilize a persecução penal e o contraditório pelo réu. Precedentes.

5. ‘O delito tipificado no artigo 89 da Lei n. 8.666/1993 pune a conduta de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade, sendo, conforme entendimento desta Corte, crime material que exige para a sua consumação a demonstração, ao menos em tese, do dolo específico de causar dano ao erário, bem como o efetivo prejuízo causado à administração pública, devendo tais elementos estarem descritos na denúncia, sob pena de ser considerada inepta’ (RHC 87.389/PR, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, DJe 6/10/2017).

6. Hipótese em que a exordial acusatória preenche os requisitos exigidos pelo art. 41 do CPP, porquanto descreve a conduta atribuída à ora recorrente – que concorreu para a dispensa indevida de licitação, em hipótese obrigatória, pois existente outra entidade, a Federação de Jiu-Jitsu Esportivo do Distrito Federal - FBJJ, tornando, assim, viável a competição, de modo a evidenciar o dolo específico em causar prejuízo ao erário e o efetivo prejuízo à Administração Pública mediante emissão de parecer favorável à contratação da Federação de JiuJitsu de Brasília - FJJB –, tendo havido a explicitação do liame entre os fatos descritos e o seu proceder, permitindo-lhe rechaçar os fundamentos acusatórios.

7. ‘A tão-só figuração de advogado como parecerista nos autos de procedimento de licitação não retira, por si só, da sua atuação a possibilidade da prática de ilícito penal, porquanto, mesmo que as formalidades legais tenham sido atendidas no seu ato, havendo favorecimento nos meios empregados, é possível o comprometimento ilegal do agir’ (HC 337.751/RN, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 1º/2/2016).

8. Recurso em habeas corpus não provido” (anexo 12).

Nesta impetração, a defesa suscita, em síntese, a inépcia da denúncia e a atipicidade da conduta imputada à paciente Fernanda Rodrigues Zanini Nazario, de modo que o trancamento excepcional da ação penal, em trâmite na 1ª Vara Criminal da Circunscrição Judiciária do Paranoá/DF, seria admissível pela via do habeas corpus.

A esse respeito, aduz que

“[a] leitura da denúncia não deixa dúvidas de que a imputação da Paciente decorre única e exclusivamente do fato de ter emitido parecer amparado em declaração de exclusividade apresentada pela proponente, sendo certo que tais hipóteses, de fato, se enquadram nos casos de inexigibilidade de licitação, uma vez que não há possibilidade de competição”.

Afirma a necessidade de o

“Ministério Público demonstrar que FERNANDA NAZÁRIO sabia da irregularidade da declaração apresentada ou que tinha conhecimento da existência de outra empresa prestando o mesmo serviço, tendo em vista que, sem as referidas considerações, não há como se extrair o dolo específico da Paciente em lesar a Administração Pública”.

Portanto, “resta inafastável que a denúncia padece de flagrante vício de inépcia, não sendo necessária a análise de qualquer outra prova documental para se chegar a esta conclusão”.

Prossegue o impetrante argumentando que,

“[e]m que pese a exordial acusatória oferecida pelo Parquet possua narrativa truncada, o que, de fato, dificulta a delimitação da conduta da Paciente, dúvida não há de que o argumento utilizado pelo órgão acusatório para afirmar a suposta ilicitude no parecer diz com o fato de que a empresa proponente, a FEDERAÇÃO DE JIU-JITSU DE BRASÍLIA –

FJJB, ‘é federação de jiu-jitsu e não de MMA’.

Nesse contexto, o que o Ministério Público local parece sustentar é que a declaração apresentada pela FEDERAÇÃO DE JIU-JITSU DE BRASÍLIA – FJJB seria insuficiente para atestar a exclusividade no serviço contratado tendo em vista que o evento a ser realizado seria de MMA e não de jiu-jitsu.

Pela leitura da denúncia, é possível notar que não há qualquer menção à existência de outra empresa prestadora do serviço contratado, sendo certo que o ato questionado pelo Ministério Público diz, tão somente, com a alegada desconformidade entre o objeto do contrato e a exclusividade consignada na documentação apresentada pela proponente”.

Assevera, ainda, que

“a denúncia não oferece o contorno jurídico elementar mínimo que possibilite a identificação da conduta delitiva a ela imputada, tendo em vista que o ato de elaborar parecer opinativo, por si só, não se enquadra na descrição do tipo penal descrito no art. 89, da Lei n.º 8.666/93.

A configuração do crime do art. 89, da Lei n.º 8.666/93, depende, inexoravelmente, da demonstração do dolo específico do agente, caracterizado pela vontade de dispensar ou inexigir licitação com a consciência de que a hipótese não se amolda aos permissivos legais.

Nesse contexto, é evidente que o mero ato de assinar parecer opinando pela possibilidade de contratação em tal modalidade não é suficiente para configurar o crime de dispensa ou inexigência indevida de licitação, sobretudo ao se considerar que, na hipótese dos autos, a decisão final não cabia à Paciente, bem como sua manifestação não detinha caráter vinculativo, que autorizam a inexigibilidade de certame.

Da narrativa apresentada pelo Ministério Público é possível dizer que a confirmação da ilicitude na conduta da Paciente dependeria da demonstração de que ela tinha consciência de que a documentação que lhe fora apresentada continha algum vício que impedia a inexigibilidade da licitação no caso concreto e que, ainda assim, proferiu parecer com o propósito específico de burlar as exigências previstas pela Lei n.º 8.666/93.

Todavia, a denúncia, além de trazer relato truncado, não aponta qualquer circunstância da qual se possa inferir que a Paciente tinha ciência de que a declaração apresentada pela proponente não era suficiente para atestar sua exclusividade, sobretudo porque não há qualquer indicativo de que o serviço prestado pela empresa diferia do objeto do evento, bem assim não há qualquer informação acerca da possível existência de outra prestadora do serviço”.

Na visão da defesa

“a inépcia da denúncia decorre, justamente, da manifesta atipicidade da conduta narrada, sobretudo em relação à Paciente, eis que o ato de proferir parecer, por si só, não se amolda ao tipo penal a ela imputado”.

Conclui que

“o parecer emitido pela Paciente não apresentou qualquer solução absurda e desarrazoada, eis que a declaração de exclusividade apresentada pela proponente autorizava o enquadramento do caso à hipótese de inexigibilidade licitação prevista na Lei n.º 8.666/93, justamente porque, não havendo prestador de serviço equiparável, é incontroversa a impossibilidade de competição.

Nesse contexto, a única hipótese que autorizaria a imputação da Paciente seria acaso atestado o seu dolo específico de emitir parecer voltado a possibilitar a celebração de contrato sem a prévia realização de licitação, mesmo diante da ciência inequívoca de que o caso concreto não autorizaria a inexigibilidade do certame.

Ocorre que a denúncia não traz qualquer elemento a partir do qual seja possível atestar que a Paciente tinha conhecimento sobre eventual vício da declaração de exclusividade submetida à apreciação da Assessoria Técnica, mesmo porque a verificação da veracidade e da viabilidade da documentação também não era atribuição do seu setor.

Nem mesmo eventual falsidade da declaração de exclusividade juntada aos autos -- que sequer fora cogitada pelo Ministério Público, cabe ressaltar -- seria suficiente para atestar a pretensa irregularidade na conduta da Paciente, eis que consistiria em fato de terceiro, muito anterior à remessa dos autos à sua apreciação.

Por outro lado, tal circunstância, acaso existente, serviria apenas para atestar que a Paciente fora levada a erro, a atrair a aplicação do art. 20, do Código Penal, corroborando, assim, a inexistência de dolo e a consequente atipicidade da sua conduta”.

Por esses fatos, postulou-se o deferimento da liminar para

“suspender o curso da Ação Penal de nº 2017.08.1.0034669, com trâmite na 1ª Vara Criminal da Circunscrição Judiciária do Paranoá-DF e, no mérito, que [fosse] concedida a ordem de habeas corpus, para os fins de determinar o trancamento da ação penal, tudo com arrimo nas razões deduzidas na presente impetração”.

Com pedido de liminar indeferido e parecer da Procuradoria-Geral da República pelo não conhecimento do writ, o eminente Relator indeferiu a impetração, em decisão assim fundamentada na parte que interessa:

Sendo esse o contexto, passo a analisar o pleito em causa.

E, ao fazê-lo, entendo não assistir razão à parte impetrante, pois os fundamentos que dão suporte ao acórdão ora impugnado ajustam-se, com integral fidelidade, à orientação jurisprudencial firmada por esta Suprema Corte.

Como se sabe, a denúncia que contiver todos os elementos essenciais à adequada configuração típica do delito e que atender, integralmente, às exigências de ordem formal impostas pelo art. 41 do CPP não apresentará o vício nulificador da inépcia, pois permitirá ao réu a exata compreensão dos fatos expostos na peça acusatória, sem qualquer comprometimento ou limitação ao pleno exercício do direito de defesa.

O exame dos autos permite reconhecer, consideradas as premissas que venho de mencionar, que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar esse ponto específico da impetração, deixou evidenciado, sem qualquer dúvida, que a peça acusatória ora questionada contém os elementos mínimos exigidos pelo art. 41 do CPP.

Não vislumbro, por isso mesmo, a ocorrência, na espécie, do vício de inépcia da denúncia, pois a peça acusatória, que observou a regra imperativa inscrita no art. 41 do CPP, descreve, de maneira adequada, todos os ‘essentialia delicti’, com as respectivas circunstâncias de tempo, de lugar, de pessoas e de modo de execução, revelando-se, portanto, processualmente apta e juridicamente idônea.

Isso significa que a inicial acusatória em causa ajusta-se ao magistério jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte (HC 83.266/MT, Red. p/ o acórdão Min. JOAQUIM BARBOSA – RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

1. Não é inepta a denúncia que, apesar de sucinta, descreve fatos enquadráveis no artigo 14 da Lei n. 6.368/76, atendendo a forma estabelecida no artigo 41 do Código de Processo Penal, além de estar instruída com documentos, tudo a possibilitar a ampla defesa.’ (HC 86.755/RJ, Rel. Min. EROS GRAU – grifei)

3. A descrição dos fatos cumpriu, satisfatoriamente, o comando normativo contido no art. 41 do Código de Processo Penal, estabelecendo a correlação entre a conduta do paciente e a imputação da prática do crime de quadrilha.’ (HC 98.157/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE – grifei)

Acolho, de outro lado, como razão de decidir, além dos fundamentos expostos na presente decisão, também aqueles em que se apoia, quanto ao mérito, o pronunciamento da douta Procuradoria-Geral da República – notadamente no que concerne à alegada ausência de justa causa para a persecução penal –, em parecer do qual se destaca a seguinte passagem:

8. Por outro lado não cabe falar em ausência de justa causa para a ação penal, dada a existência de indícios suficientes de autoria e materialidade delitivas hábeis a justificar a instauração e prosseguimento da persecução criminal. Conforme bem pontuou o TJDFT ao analisar a questão, ‘Na hipótese, constam nos autos elementos comprobatórios da materialidade e de indícios suficientes de autoria, tais como, Portaria de Instauração de Inquérito (fls. 34/37), Teor do Despacho de Indiciamento (fls. 38/56) e

Cópia do Procedimento Administrativo nº

140.000.328/2013 (fls. 58/91).’

(…)

11. Vale registrar que em princípio a conduta imputada à paciente amolda-se ao tipo do art. 89 da Lei nº 8.666/93 e maiores questionamentos a este respeito seguramente transbordam os estreitos limites de cognição do ‘writ’ e devem ser remetidos à via própria da instrução criminal.

12. Assim, o prosseguimento da ação penal constitui medida imperativa a fim de que em sede própria, à luz da ampla defesa e contraditório, os fatos sejam aclarados e precisamente delineados os ilícitos apontados na denúncia, viabilizando-se a responsabilização criminal dos acusados caso as provas sinalizem neste sentido.’ (grifei)

Ao adotar, como razão de decidir, os fundamentos em que se apoia a manifestação da douta Procuradoria-Geral da República, valho-me, para tanto, da técnica da motivação ‘per relationem’, cuja legitimidade constitucional tem sido amplamente reconhecida por esta Corte (AI 738.982- -AgR/PR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – AI 813.692-AgR/RS, Rel. Min.

CELSO DE MELLO – MS 28.677-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE

MELLO – MS 28.989-MC/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 172.292/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES, v.g.).

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, pronunciando-se a propósito da técnica da motivação por referência ou por remissão, reconheceu-a compatível com o que dispõe o art. 93, inciso IX, da Constituição da República, como resulta de diversos precedentes firmados por esta Suprema Corte (HC 54.513/DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RE 37.879/MG, Rel. Min. LUIZ GALLOTTI – RE 49.074/MA, Rel. Min. LUIZ GALLOTTI):

‘Reveste-se de plena legitimidade jurídicoconstitucional a utilização, pelo Poder Judiciário, da técnica da motivação ‘per relationem’, que se mostra compatível com o que dispõe o art. 93, IX, da Constituição da República. A remissão feita pelo magistrado – referindo-se, expressamente, aos fundamentos (de fato e/ou de direito) que deram suporte a anterior decisão (ou, então, a pareceres do Ministério Público, ou, ainda, a informações prestadas por órgão apontado como coator) – constitui meio apto a promover a formal incorporação, ao ato decisório, da motivação a que o juiz se reportou como razão de decidir. Precedentes.’

(AI 825.520-AgR-ED/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cabe salientar, nesse contexto, conforme diretriz jurisprudencial estabelecida por esta Corte, que a simples instauração de persecutio criminis” não constitui, só por si, situação caracterizadora de injusto constrangimento (RTJ 78/138 – RTJ 181/1039-1040, v.g.), notadamente quando iniciada por denúncia consubstanciadora de descrição fática cujos elementos ajustem-se, ao menos em tese, ao tipo penal:

'EXTINÇÃO ANÔMALA DO PROCESSO PENAL. INDAGAÇÃO PROBATÓRIA EM TORNO DOS

ELEMENTOS INSTRUTÓRIOS. SUPOSTA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL.

EXISTÊNCIA, NO CASO, DE DADOS PROBATÓRIOS MÍNIMOS, FUNDADOS EM BASE EMPÍRICA IDÔNEA.

CONTROVÉRSIA QUE, ADEMAIS, IMPLICA EXAME

APROFUNDADO DE FATOS E CONFRONTO

ANALÍTICO DE MATÉRIA ESSENCIALMENTE

PROBATÓRIA. INVIABILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA

DO ‘HABEAS CORPUS’. PEDIDO INDEFERIDO.’

(HC 122.856/CE, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Impende assinalar, ainda, que o reconhecimento da ausência de justa causa para a persecução penal, embora cabível em sede de ‘habeas corpus’, reveste-se de caráter excepcional. É que, para tal revelar-se possível, impõe-se inexistir qualquer situação de iliquidez ou de dúvida objetiva quanto aos fatos subjacentes à acusação penal.

Registre-se, neste ponto, que não se revela adequado proceder, em sede de ‘habeas corpus’, a indagações de caráter eminentemente probatório, especialmente quando se busca discutir elementos fáticos subjacentes à causa penal.

No caso, o E. Superior Tribunal de Justiça, no acórdão ora impugnado, destacou, precisamente, a ausência da necessária liquidez dos fatos essenciais à corroboração das alegações deduzidas na impetração:

‘Com efeito, nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus’ é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, o que não se infere na hipótese dos autos.

(...)

O reconhecimento da inexistência de justa causa para o exercício da ação penal, dada a suposta ausência de elementos de informação a demonstrarem a materialidade e a autoria delitivas, exige profundo exame do contexto probatório dos autos, o que é inviável na via estreita do ‘writ’.” (grifei)

Não se pode desconhecer, consideradas as razões expostas pelo E. Superior Tribunal de Justiça, que a ocorrência de iliquidez em relação aos fatos alegados na impetração basta, por si só, para inviabilizar a utilização adequada da ação de ‘habeas corpus’, remédio processual que não admite dilação probatória, nem permite o exame aprofundado de matéria fática, nem comporta a análise valorativa de elementos de prova produzidos no curso do processo penal de conhecimento (RTJ 110/555 – RTJ 129/1199 – RTJ 136/1221 – RTJ 163/650-651 – RTJ 165/877-878 – RTJ 186/237, v.g.):

‘A ação de habeas corpusconstitui remédio processual inadequado, quando ajuizada com objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento. Precedentes.’ (RTJ 195/486, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cumpre acentuar, também, na linha de reiterados pronunciamentos desta Suprema Corte (RT 594/458 – RT

747/597 – RT 749/565 – RT 753/507, v.g.), que, ‘Em sede de ‘habeas corpus’, só é possível trancar ação penal em situações especiais, como nos casos em que é evidente e inafastável a negativa de autoria, quando o fato narrado não constitui crime, sequer em tese, e em situações similares, onde pode ser dispensada a instrução criminal para a constatação de tais fatos (…)’

(RT 742/533, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – grifei).

Essa orientação não custa enfatizar tem o prestigioso beneplácito de JULIO FABBRINI MIRABETE ('Código de

Processo Penal Interpretado', p. 1.426/1.427, 7ª ed., 2000, Atlas), cuja autorizada lição, no tema, adverte:

‘Também somente se justifica a concessão de ‘habeas corpus’, por falta de justa causa para a ação penal, quando é ela evidente, ou seja, quando a ilegalidade é evidenciada pela simples exposição dos fatos, com o reconhecimento de que há imputação de fato atípico ou da ausência de qualquer elemento indiciário que fundamente a acusação (…). Há constrangimento ilegal quando o fato imputado não constitui, em tese, ilícito penal, ou quando há elementos inequívocos, sem discrepâncias, de que o agente atuou sob uma causa excludente da ilicitude. Não se pode, todavia, pela via estreita do mandamus’, trancar ação penal quando seu reconhecimento exigir um exame aprofundado e

valorativo da prova dos autos.’ (grifei)

Em suma: tenho para mim que os fundamentos subjacentes ao acórdão ora impugnado ajustam-se aos estritos critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consagrou na matéria em exame.

Sendo assim, em face das razões expostas, e acolhendo, ainda, quanto ao mérito, os fundamentos do parecer da douta Procuradoria-Geral da República, indefiro este pedido de

'habeas corpus'.

Arquivem-se os presentes autos” (grifos do autor).

Em razão dessa decisão, a impetrante interpõe, tempestivamente, o presente agravo regimental, no qual questiona os fundamentos da decisão agravada, bem como reitera as teses suscitadas na inicial da ação.

O feito foi levado a julgamento em sessão virtual da Corte, oportunidade na qual o eminente Ministro Celso de Mello apresentou bem fundamentado voto pelo não provimento do agravo.

O voto de Sua Excelência foi sintetizado na seguinte ementa:

HABEAS CORPUS. PRETENDIDO

RECONHECIMENTO DA INÉPCIA DA DENÚNCIA E DA

AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUTIO CRIMINIS. OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS FIXADOS PELO ART. 41 DO CPP. PEÇA ACUSATÓRIA QUE ATENDE, PLENAMENTE, ÀS EXIGÊNCIAS LEGAIS. EXISTÊNCIA, AINDA, DE SITUAÇÃO DE ILIQUIDEZ QUANTO AOS FATOS SUBJACENTES À ACUSAÇÃO PENAL.

CONTROVÉRSIA QUE IMPLICA EXAME APROFUNDADO

DE FATOS E CONFRONTO ANALÍTICO DE MATÉRIA

ESSENCIALMENTE PROBATÓRIA. INVIABILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA DO HABEAS CORPUS. PRECEDENTES.

ADOÇÃO DA TÉCNICA DE MOTIVAÇÃO PER

RELATIONEM. LEGITIMIDADE JURÍDICOCONSTITUCIONAL. DESSA TÉCNICA DE

FUNDAMENTAÇÃO. RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.”

Pedi vista dos autos para melhor analisar a questão posta.

Bem relatados os fatos, passo ao voto.

Como acertadamente advertiu o eminente Ministro Celso de Mello ao citar o saudoso Ministro Maurício Corrêa,

“‘[e]m sede de ‘habeas corpus’, só é possível trancar ação penal em situações especiais, como nos casos em que é evidente e inafastável a negativa de autoria, quando o fato narrado não constitui crime, sequer em tese, e em situações similares, onde pode ser dispensada a instrução criminal para a constatação de tais fatos (…)’ (RT 742/533, (...) – grifei)”.

Portanto, a Corte tem admitido o trancamento de ação penal pela via do habeas corpus quando é evidente a falta de justa causa para seu prosseguimento, seja pela inexistência de indícios de autoria do delito, seja pela não comprovação de sua materialidade, seja, ainda, pela atipicidade da conduta imputada (v.g. HC nº 138.507/SP, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 4/8/17; HC nº

94.752/RS, Relator o Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJe de 17/10/08; HC nº 148.604/SP, de minha relatoria, DJe de 1º/8/18).

Pois bem, segundo se infere dos autos o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios ofereceu denúncia em face da agravante e outros, imputando-lhes a prática do crime descrito no art. 89, c/c o art. 99, e art. 84, § 2º, todos da Lei nº 8.666/93, porque, na qualidade de chefe da Assessoria Técnica da Administração do Paranoá/DF, emitiu parecer opinativo favorável à legalidade da contratação direta, por inexigibilidade de licitação, da Federação de Jiu-Jitsu de Brasília (FJJB), visando à realização de evento denominado “Paranoá Fight”.

A exordial acusatória narra os fatos da seguinte forma:

“Em 1º de maio de 2013, o denunciado ANTÔNIO

NATALINO DOS SANTOS JÚNIOR, na condição de presidente da FEDERAÇÃO DE JIU-JITSU DE BRASÍLIA - FJJB, apresentou proposta ao denunciado CEZAR CASTRO LOPES, então exercendo o cargo em comissão de Administrador Regional do Paranoá, com o seguinte teor, A Federação de JiuJitsu de Brasília, inscrita no CNPJ: 16.647.402/0001-12. localizada na ONO 05 Conjunto O Lote 14 loja 02 - Setor ‘O’, através da pessoa do Presidente Antônio Natalino dos Santos Júnior. CPF: 858.430.241-7, vem propor ao Administrador do Paranoá. Sr. Cezar Castro Lopes, apoio para o evento de MAMA, denominado Paranoá Fight, que terá em seu card 07 lutas de MAMA, sendo que todos os lutadores são profissionais, o evento terá um público aproximado de 1000 pessoas, tendo seu inicio às 19:00hs e termino às 00:00hs. Contamos com sua colaboração. Esta proposta perfaz o valor de 50.000.00 (Cinquenta Mil Reais) (PA 140.000.328/2013, fl. 16).

Em 21 de maio de 2013, o denunciado SUENILSON SAULNIER DE PIERRELEVÉE SÁ, à época exercendo o cargo em comissão de diretor da Diretoria Social da Administração Regional do Paranoá, elaborou projeto básico, já no objeto, especificando que era Contratação da Federação de Jiu Jitsu de Brasília para realização do "Primeiro Paranoá Fight", com participação de atletas profissionais federados, a ser realizado em 26 de maio de 2013 entre 18h e 0h, com público estimado de 1.000 pessoas, superestimando os custos de contratação que contaria com 14 atletas profissionais dispostos em duplas, quatro árbitros, e cinco mesários, tendo como estimativa de custo o exato valor da proposta anteriormente apresentada pelo denunciado ANTÔNIO NATALINO DOS SANTOS JÚNIOR,

R$ 50.000,00. Esse projeto básico foi aprovado na mesma data, 21 de maio de 2013, pelo denunciado CEZAR CASTRO LOPES, então Administrador Regional do Paranoá (PA

140.000.328/2013, fls. 3-15).

Com o objetivo de comprovar habilitação para realizar o evento por inexigibilidade de licitação, a FJJB apresentou declaração de 7 de janeiro de 2013, firmada pelo Vice Presidente da Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu no sentido que a FJJB seria a única Federação de Jiu-Jitsu de Brasília devidamente cadastrada e reconhecida por este Confederação e está autorizada a realizar eventos de Jiu-Jitsu no Distrito Federal.

Em 22 de maio de 2013, a FJJB apresentou declarações com o objetivo de justificar a diferença de preços de R$ 30.000.00 para R$ 50.000.00, entre evento realizado em São Sebastião e o de Paranoá. Assim, em 23 de maio de 2013, o denunciado SUENILSO SAULNIER DE PIERRELEVÉE SÁ elaborou documento acolhendo ditas alegações (PA 140.000.328/2013. fls. 52-53).

Em 24 de maio de 2013, o denunciado CEZAR CASTRO LOPES determinou que fosse informada disponibilidade orçamentário para realização da contratação e, no dia seguinte e ANA CAROLINA NEVES DOS SANTOS, então no exercício do cargo em comissão de Diretora da Diretoria de Administração Geral da Administração Regional do Paranoá, determinou o encaminhamento dos autos à Gerência de Orçamento. Finanças e Contratos, solicitando informar a existência de saldo orçamentário e financeiro no valor de R$ 50.000.00 (cinquenta mil reais para custear a contratação de empresa especializada para realização de evento Paranoá Fight de MMA no ginásio do Paranoá) (PA 140.000.328/2013 fls. 117 e 118).

A informação, da GOFIC dá conta que os recursos apontados como existentes se destinam a Apoio ao Desporto e Lazer para a Juventude do Distrito Federal - Apoio ao Desporto Amador Paranoá (PA 140.000.328/2013. fls. 119-122).

Em 24 de maio de 2013. o denunciado CEZAR CASTRO

LOPES determinou o encaminhamento dos autos à Assessoria Técnica da Administração Regional do Paranoá, para emissão de parecer (PA 140.000.328/2013. fl. 124). O parecer de mesma data, 24 de maio de 2013, da lavra da então Chefe da Assessoria Técnica da Administração Regional do Paranoá, a denunciada FERNANDA RODRIGUES ZANINI NAZARIO, em razão das ilegalidades flagrantes e das contradições sobre a exclusividade da FJJB, que é federação de jiu-jitsu e não de MMA, haja vista a proposta inserida nos autos, a peça dita opinativa foi favorável à contratação, configurando-se apenas como instrumento dolosamente elaborado destinado a possibilitar a realização da despesa ilegal (PA

140.000.328/2013. fls. 125-130)” (grifos nossos).

Como visto a conduta imputada à agravante foi a de, na qualidade de chefe da Assessoria Técnica da Administração Regional, emitir parecer favorável à inexigibilidade da licitação fora das hipóteses previstas em lei (art. 89 da Lei nº 8.666/93). Esse delito apresenta-se, normativamente, da seguinte maneira:

“Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.”

De acordo com o ordenamento vigente, a denúncia, tal qual a queixa, deve conter a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado (ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo), a classificação do crime e, quando for o caso, o rol de testemunhas (CPP, art. 41). Tais exigências se fundamentam na necessidade de se precisarem, com acuidade, os limites da imputação, de modo a viabilizar não só o exercício da ampla defesa, mas também a aplicação da lei penal pelo órgão julgador.

A verificação acerca da narração de fato típico, antijurídico e culpável, da inexistência de causa de extinção da punibilidade e da presença das condições exigidas pela lei para o exercício da ação penal (aí incluída a justa causa) revela-se fundamental para o juízo de admissibilidade de deflagração da ação penal, em qualquer hipótese.

É sabido que a presença de justa causa para a deflagração de uma ação penal é um dos pilares, da óptica da Lei Maior, de um processo penal verdadeiramente legítimo, havendo a preocupação de se subsumir o comportamento do infrator ao previsto na lei penal, mas sem se descurar da observância dos preceitos contidos no texto magno.

À luz dessas premissas e melhor sopesando os termos da denúncia em conjunto com os elementos fático-jurídicos demonstrados, estou convencido da ausência do elemento subjetivo do tipo, essencial à configuração do delito imputado à agravante, com a devida venia do eminente Relator.

Em meu sentir, o Parquet não logrou demonstrar suficientemente, na denúncia, a vontade conscientemente dirigida, por parte da agravante, de superar a necessidade de realização da licitação, sendo certo, ademais, que a exordial acusatória apresenta certa contradição com essa afirmação, quando traz em seu bojo a assertiva de que

“a FJJB apresentou declaração de 7 de janeiro de 2013, firmada pelo Vice-Presidente da Confederação Brasileira de JiuJitsu no sentido que a FJJB seria a única Federação de Jiu-Jitsu de Brasília devidamente cadastrada e reconhecida por este Confederação e está autorizada a realizar eventos de Jiu-Jitsu no Distrito Federal” (grifos nossos).

Ora, se a documentação acostada ao processo administrativo, cuja veracidade não foi questionada, sinalizava que a FJJB seria a única Federação de Jiu-Jitsu de Brasília devidamente cadastrada e reconhecida pela Confederação Brasileira do esporte para a realização do evento na capital (anexo 5 - fls. 73 a 75), não haveria, naquele momento , conclusão diversa de que o caso era mesmo de inexigibilidade de licitação, por inviabilidade de competição, mormente se levada em conta a total ausência de notícia, no bojo do processo, sobre a existência de outra entidade (Federação de Jiu-Jitsu Esportivo do Distrito Federal-FBJJ).

E foi nesse sentido o parecer assinado pela agravante. Vide, na parte que interessa, excertos do documento em questão:

“(...) a contratação da Federação ‘Brasiliense de Jiu-Jitsu’, enquadra-se nas hipóteses de inexigibilidade de licitação pública, ou seja, hipótese em que não se poderia exigir a licitação pública, uma vez que, mesmo que esta Administração quisesse realizá-la, tal tentativa estaria fadada ao insucesso, pois a referida Federação é a única representante dos profissionais a serem contratados (fls. 18), havendo portanto, inviabilidade de competição.

(…)

Ao compulsar os autos, verifica-se que a descrição do objeto é clara e objetiva; o Projeto Básico foi devidamente aprovado; a ‘Federação Brasiliense de Jiu-Jitsu’ apresentou a documentação devida, sendo a única representante da modalidade em Brasília, e há informação da existência de recurso orçamentário para custear a despesa.

(…)

Diante do exposto, atendidas as recomendações acima citadas, SMJ não há óbice para que esta Administração Regional do Paranoá proceda à contratação objeto desse processo por meio de inexigibilidade de licitação” (anexo 6 – fls. 6-7).

A doutrina, majoritariamente, aponta que as hipóteses elencadas no art. 25 da Lei nº 8.666/93 já caracterizam exemplos da inviabilidade de competição.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello,

“[c]umpre salientar que a relação dos casos de inexigibilidade não é exaustiva. Com efeito, o art. 25 refere que a licitação é inexigível quando inviável a competição. E apenas destaca algumas hipóteses. Por isto disse, em seguida: ’em especial (...)’. Em suma: o que os incisos I a III do art. 25 estabelecem é, simplesmente, uma prévia e já resoluta indicação de hipóteses nas quais ficam antecipadas situações características de inviabilidade, nos termos ali enumerados, sem exclusão de casos não catalogados, mas igualmente possíveis.

Outras hipóteses de exclusão do certame licitatório existirão, ainda que não arroladas nos incisos I a III, quando se proponham situações nas quais estejam ausentes os pressupostos jurídicos ou fáticos condicionadores dos certames licitatórios. Vale dizer: naquelas hipóteses em que ou (a) o uso da licitação significaria simplesmente inviabilizar o cumprimento de um interesse jurídico prestigiado no sistema normativo e ao qual a Administração deva dar provimento ou (b) os prestadores do serviço almejado simplesmente não se engajariam na disputa dele em certame licitatório, inexistindo, pois, quem, com as aptidões necessárias, se dispusesse a disputar o objeto de certame que se armasse a tal propósito” (Curso de Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 561 - grifos nossos).

Para Hely Lopes Meirelles,

“[o]corre a inexigibilidade de licitação quando há impossibilidade jurídica de competição entre os contratantes, quer pela natureza específica do negócio, quer pelos objetivos sociais visados pela Administração” (Direito Administrativo brasileiro. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 301 – grifos nossos).

Hely Lopes aduz, ainda, que, nos casos descritos no art. 25 da lei de regência, em que o contratado é o único que reúne as condições necessárias à plena satisfação do objeto do contrato (incisos II e III), a licitação

é inexigível em razão da impossibilidade jurídica de se instaurar competição entre os eventuais interessados, pois não se pode pretender melhor proposta quando apenas um é proprietário do bem desejado pelo Poder Público ou reconhecidamente capaz de atender às exigências da Administração no que concerne à realização do objeto do contrato. Falta o pressuposto da licitação, que é a competição” (op. cit., p. 301 - grifos nossos).

No mesmo sentido, Marçal Justen Filho:

“Em primeiro lugar, os incisos do art. 25 desempenham função exemplificativa. Tratando-se de instituto complexo como se passa com a inexigibilidade, o conceito de inviabilidade de competição pode ser muito mais facilmente reconhecido mediante a análise dos exemplos contidos no elenco legal. Se não existissem os três incisos do art. 25, muitos seriam tentados a restringir a inexigibilidade apenas aos casos de ausência de pluralidade de alternativas de contratação. Mas a existência do dispositivo do inc. III evidencia que o conceito de inviabilidade de competição tem de ser interpretado amplamente, inclusive para abranger os casos de impossibilidade de julgamento objetivo. Em outras palavras, a análise dos incisos do art. 25 permite identificar o conceito de inviabilidade de competição consagrado no caput do dispositivo” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 485 a 486 - grifos nossos).

Doutrinariamente, portanto, estava bem alicerçada a posição da agravante pela inexigibilidade de licitação, calcada exclusivamente no art. 25, II e III, da Lei de Regência, o qual, por si só, descreve situação característica de inviabilidade de competição.

Em outras palavras, a impossibilidade jurídica de haver competição entre eventuais interessados não é um plus que se agrega às hipóteses dos incisos do art. 25, e sim a consequência lógica da tipificação de uma dessas hipóteses.

Note-se que, embora o Parquet tenha afirmado que a agravante teria agido dolosamente em seu parecer, diante da existência de contradições sobre a exclusividade da FJJB, o processo administrativo, em nenhuma das suas manifestações, sinalizou tais ocorrências, sendo certo, ademais, que a denunciada somente detinha competência para emitir parecer técnico sobre inexigibilidade da licitação sob prisma estritamente jurídico, não cabendo adentrar em aspectos relativos à conveniência e à oportunidade da prática dos atos administrativos, tampouco examinar a veracidade das questões de natureza técnica (como a autenticidade da documentação acostada), administrativa ou financeira, salvo teratologia, que não ficou evidenciada na espécie.

Por outro lado, a manifestação levada a efeito foi de natureza meramente opinativa e, portanto, não vinculante para o gestor público, o qual pode, de forma justificada, adotar ou não a orientação exposta no parecer. Ou seja, o parecer tem natureza obrigatória (art. 38, VI, da Lei nº 8.666/93), porém não vinculante.

Por essa perspectiva, como já sinalizado pela Corte, mutatis mutandis, é lícito concluir pela abusividade da responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha supostamente resultado dano ao erário (v.g. MS nº 24.631/DF, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJe de 1º/2/08).

Tal conclusão se robustece quando se torna evidente, para além do dolo simples necessário (vontade consciente de contratar independentemente da realização de procedimento licitatório), que o Parquet não apresentou, na denúncia, elemento probatório mínimo que demonstrasse qualquer tipo de intenção por parte da agravante de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.

Nesse sentido, invoco, mais uma vez, as precisas lições de Marçal Justen Filho, quando sustenta que

“o elemento subjetivo consiste não apenas na intenção maliciosa de deixar de praticar a licitação cabível. Se a vontade consciente e livre de praticar a conduta descrita no tipo fosse suficiente para concretizar o crime, então seria de admitir-se modalidade culposa. Ou seja, quando a conduta descrita no dispositivo fosse concretizada em virtude de negligência, teria de haver a punição. Isso seria banalizar o Direito Penal e produzir criminalização de condutas que não se revestem de reprovabilidade. É imperioso, para a caracterização do crime, que o agente atue voltado a obter um outro resultado, efetivamente reprovável e grave, além da mera contratação direta. Ocorre, assim, a conduta ilícita quando o agente possui a vontade livre e consciente de produzir o resultado danoso ao erário. É necessário um elemento subjetivo consistente em produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação. Portanto, não basta a mera intenção de não realizar licitação em um caso em que tal seria necessário” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 831)

Ademais, a ausência de observância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade da licitação somente é passível de sanção quando acarretar contratação indevida e houver demonstração da vontade ilícita do agente em produzir um resultado danoso, o que entendo não ser o caso.

A esse respeito, lembra Márcio dos Santos Barros que

“talvez seja este o crime que maior preocupação traga ao administrador público porque diz respeito a assuntos absolutamente controvertidos, que dependem em grande parte de interpretação de questões não pacíficas. Assim, só pode ser aplicável à hipótese a clara e dolosa violação à lei.” (Comentários sobre Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: NDJ, 2005. p. 293)

Sobre a matéria, destaco decisão da Corte no HC nº 155.440/RS que, ao superar a Súmula nº 691/STF, concedeu a ordem e absolveu o paciente da prática do crime do art. 89, caput, da Lei nº8.6666/93, uma vez que não demonstrado o dolo específico da conduta, vale dizer, intenção de produzir prejuízo ao erário por meio do afastamento indevido da licitação. Vide:

“Trata-se de habeas corpus com pedido de medida liminar impetrado por Marcelo Selhorst, em favor de Silvestre Selhorst, contra decisão do Ministro Sebastião Reis Júnior, do

Superior Tribunal de Justiça (STJ), que indeferiu a liminar no HC 443.105/RS.

Consta dos autos que o paciente foi denunciado pela prática do delito descrito pelo art. 89, caput, da Lei 8.666/1993 (dispensa indevida de licitação).

Com efeito, o Juízo da 2ª Vara Federal de Santa Maria, da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, julgou improcedente a denúncia e absolveu o paciente.

Irresignado, o Parquet interpôs apelação ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que reformou a decisão, condenando o paciente ao cumprimento de 4 anos e 1 mês de detenção, a serem cumpridos em regime inicial semiaberto, mais multa de 4% sobre o valor do contrato licitado, em acórdão assim ementado:

‘PENAL. DISPENSA DE LICITAÇÃO. ART. 89,

CAPUT, DA LEI Nº. 8.666/1993. DESNECESSIDADE DE

COMPROVAÇÃO DE EFETIVO PREJUÍZO AOS COFRES PÚBLICOS. DOLO ESPECÍFICO. INEXIGIBILIDADE. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO (GENÉRICO)

DEMONSTRADOS. CONDENAÇÃO. DOSIMETRIA. MULTA.

1. O efetivo prejuízo aos cofres públicos não constitui elemento essencial do crime previsto no artigo 89 da Lei nº 8.666/93, o qual tipifica delito formal e de perigo abstrato, de modo que sua consumação se dá com a mera dispensa ou não-exigência da licitação - em hipótese na qual a lei não tenha autorizado tal proceder.

2. O delito previsto no artigo 89 da Lei de Licitações não exige dolo específico, bastando para sua caracterização que o agente tenha, livre e conscientemente, atuado no intuito de burlar o procedimento licitatório nos casos em que a lei não o tenha dispensado e/ou autorizado sua dispensa/inexigência; tal conclusão decorre não apenas da simples leitura do citado dispositivo legal (que não traz em si qualquer expressão como 'com o fim de', 'com o intuito de', etc.), mas também porque, em casos tais, o desvalor da conduta se esgota no dolo, sendo desnecessário - ao menos para efeito de sindicar-se a configuração típica - o exame da finalidade almejada pelo agente quando da dispensa/não-exigência da licitação.

3. 'A dosimetria da pena é matéria sujeita a certa discricionariedade judicial. O Código Penal não estabelece rígidos esquemas matemáticos ou regras absolutamente objetivas para a fixação da pena.' (HC 107.409/PE, 1.ª Turma do STF, Rel. Min. Rosa Weber, un., j. 10.4.2012, DJe091, 09.5.2012), devendo o ser tomado em conta os princípios da necessidade e eficiência, decompostos nos diferentes elementos previstos no art. 59 do Código penal, principalmente na censurabilidade da conduta.

4. Caso em que a culpabilidade deve ser considerada elevada, na medida em que se trata de réus que têm ampla possibilidade de comportar-se em conformidade com o direito.

5. Hipótese em que incide a causa de aumento prevista no art. 84, § 2º, da Lei nº 8.666/93 para dois dos três réus.

6. Considerando que a pena privativa de liberdade foi fixada próxima do máximo cominado, a multa deve ser fixada igualmente em seu valor próximo ao máximo previsto.

7. Segundo recente decisão proferida nos autos do

Habeas Corpus nº 126.292/SP, datada de 17/02/2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu possível iniciar a execução da pena após a confirmação da sentença em segundo grau, afastada a hipótese de ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência. Esse entendimento foi consolidado nesta Corte no julgamento dos Embargos Infringentes e de Nulidade nº 500857231.2012.4.04.7002/PR’.

Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados.

Na ocasião, a Corte determinou a execução provisória da pena.

Daí a impetração de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, requerendo-se, liminarmente, a suspensão dos efeitos do acórdão proferido em sede de apelação criminal e, no mérito, o trancamento da ação penal por atipicidade do fato.

O relator indeferiu liminarmente o pedido. (eDOC 3)

Nesta Corte, o paciente impetrou habeas corpus, para que lhe fosse concedido o direito de aguardar o julgamento em liberdade.

Ao referido habeas corpus neguei seguimento, com fundamento na Súmula 691 desta Corte. (HC 154.706/RS, de minha relatoria, DJe 21.5.2018)

Quando ainda pendente de julgamento, o paciente impetrou o presente habeas corpus, por meio do qual aduz que a defesa de dois dos corréus, Alberi Vargas e Antonio Sérgio Freitas Farias, impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, através do qual alegava a atipicidade da conduta e o acerto da decisão do Juízo de primeiro grau.

O Ministro Sebastião Reis Júnior, relator, concedeu a ordem para restabelecer a sentença e, com isso, absolver os citados corréus, nos seguintes termos (HC 402.498/RS):

‘Pois bem. A jurisprudência mais recente do Superior

Tribunal de Justiça, firmada a partir do julgamento da APN n. 480/MG, em 29/03/2012, acompanhando o entendimento do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal (Inq n. 2.482/MG, julgado em 15/9/2011), assevera que a consumação do crime do art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige a demonstração do dolo específico, ou seja, a intenção de causar dano ao erário e a efetiva ocorrência de prejuízo aos cofres públicos, decorrente da contratação com dispensa ou fraude na licitação’. (eDOC 2, p. 6)

No presente writ, a defesa sustenta que a decisão do Superior Tribunal de Justiça deve alcançar o paciente, exatamente porque foi fixada uma tese, segundo a qual a caracterização do crime de dispensa indevida de licitação exige a presença do dolo e o dano ao erário.

É o relatório.

Decido.

Registre-se, de início, que não foi interposto agravo contra a decisão de relator no STJ.

Todavia, verifico constrangimento ilegal manifesto, a autorizar a superação da Súmula 691 desta Corte.

Com efeito, verifico que o Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar habeas corpus de dois dos réus, concedeu a ordem para restabelecer a sentença e, com isso, absolvê-los, conforme relatado.

Mais a mais, esta Suprema Corte tem entendido que não basta o dolo genérico, consistente na vontade consciente de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais. Exigese a demonstração de uma específica intenção de lesar o erário. Nessa linha:

‘Ação penal. Dispensa de licitação (art. 89, caput e parágrafo único, da Lei nº 8.666/93). Tomada de preço. Contratos de locação de veículos. Termos aditivos. Prorrogação do prazo de vigência. Alegada violação do art. 57 da Lei nº 8.666/93. Ausência de dolo. Fato atípico. Ordenação de despesas não autorizadas (art. 359-D do Código Penal). Acusado que, à época dos fatos, não mais detinha qualquer poder para ordenar as despesas em questão. Ação penal improcedente. 1. O tipo penal do art. 89 da Lei nº 8.666/93 pressupõe, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação. 2. Não se vislumbra, na conduta dos acusados de firmar termos aditivos, prorrogando a vigência de contratos de locação de veículos precedidos de licitação na modalidade de tomada de preços, o dolo de causar prejuízo ao erário.

Atipicidade do fato reconhecida. 3. Uma vez que o acusado, à época dos fatos, não detinha mais poderes para ordenar despesas não autorizadas por lei, está provado que não concorreu de qualquer forma para o crime descrito no art. 359-D do Código Penal. 4. Ação penal julgada improcedente’. (AP 700, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 23.2.2016, grifei)

No mesmo sentido: Inquérito 2.646/RN, Rel Min. Dias Toffoli; Inquérito 3.077, Relator Min. Dias Toffoli; Ação Penal 409, Relator Min. Carlos Britto; Inquérito 2.588, Redator para acórdão Min. Luiz Fux; e Ação Penal 527, Rel. Min. Dias Toffoli.

Esse posicionamento visa a estabelecer uma necessária distinção entre o administrador probo que, sem má-fé, aplica de forma errônea ou equivocada as intrincadas normas de dispensa e inexigibilidade de licitação, previstas nos artigos 24 e 25 da Lei 8.666/93, daquele que dispensa o certame que sabe ser necessário na busca de fins espúrios.

Como dito, o simples cotejo das compreensões jurídicas do Supremo Tribunal Federal com aquela que prevaleceu no ato apontado originariamente como coator, sobre a exigência de especial fim de agir (por alguns denominado dolo específico) para a configuração da tipicidade subjetiva do delito previsto no art. 89 da Lei 8.666/93, demonstra que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região não seguiu a compreensão desta Suprema Corte, o que é causa bastante para obstar o imediato cumprimento da pena privativa de liberdade.

Ante o exposto, concedo a ordem, a fim de restabelecer a sentença de primeiro grau e determinar a absolvição do paciente” (Relator o Ministro Gilmar Mendes, julgado em 13/6/18).

Perfilhando esse entendimento, cito os seguintes julgados:

“PROCESSO PENAL. INQUÉRITO. ENVOLVIMENTO DE PARLAMENTAR FEDERAL. CRIME DE DISPENSA IRREGULAR DE LICITAÇÃO (ART. 89 DA LEI Nº 8.666/93).

AUDIÇÃO PRÉVIA DO ADMINISTRADOR À

PROCURADORIA JURÍDICA, QUE ASSENTOU A

INEXIGIBILIDADE DA LICITAÇÃO. AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO DOLO. ART. 395, INCISO III, DO

CPP. INEXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO

PENAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA” (Inq 3.753/DF, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 30/5/17).

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. PREFEITO. DESMEMBRAMENTO DO PROCESSO. LICITAÇÃO.

INEXIGIBILIDADE. CRIME DO ARTIGO 89 DA LEI 8.666/93.

DOLO. AUSÊNCIA DE PROVA ACIMA DE DÚVIDA

RAZOÁVEL. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. ABSOLVIÇÃO”

(AP nº 580/SP, Relator o Ministro Roberto Barroso, DJe de 26/6/17).

“Ação Penal. Ex-prefeito municipal que, atualmente, é deputado federal. Dispensa irregular de licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade. Ação penal improcedente” (AP nº 559/PE, Primeira Turma, de minha relatoria, DJe de 31/10/14).

“Ação Penal. Ex-prefeito municipal. Atualmente, deputado federal. Dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses previstas em lei (Art. 89, da Lei nº 8.666/93). Ausência do elemento subjetivo do tipo. Pedido julgado improcedente, com a absolvição do réu com fundamento no art. 386, V, do Código de Processo Penal” (AP nº 527/PR, Tribunal Pleno, de minha relatoria, DJe de 4/4/11).

Diante dessas considerações, por entender que a denúncia não apontou elementos mínimos que demonstrassem o dolo na prática do delito definido no art. 89 da Lei nº 8.666/93, consistente na dispensa irregular de licitação, peço a mais respeitosa venia ao Ministro Celso de Mello para prover o agravo regimental e conceder a ordem de habeas corpus para trancar a ação penal em relação à agravante. É como voto.

*Acordão pendente de publicação no DJe.

http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo.htm

Supremo Tribunal Federal - STF

Secretaria de Documentação – SDO

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